quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

FUTEBOL: MOTIVO DE GÊNERO E BRASILIDADE *

Vem cá também tu, venerável forasteiro; exibe-te
nalgum desporto, se aprendeste algum. Tu deves
conhecer desportos, pois a maior glória na vida
dum homem são os feitos que realiza com os pés e as mãos.
(Canto VIII,” Odisséia”-Homero)


As imagens do futebol tem habitado corações e mentes dos brasileiros desde o final dos anos 30 até quase o fim da década de 90. Durante estes 60 anos, tem se constituido certamente em um dos símbolos mais importantes e reconhecidos de brasilidade, pela identificação maciça de seu povo, especialmente em tempos de torneios e competições internacionais, validada por estrangeiros. Até hoje Pelé é o brasileiro mais conhecido no planeta (Talvez Airton Senna e o ex-presidente Lula hoje também sejam tão conhecidos). Do futebol nos orgulhamos, por ele sofremos e através dele nos afirmamos como povo e nacionalidade.
As imagens relacionadas com o futebol constituem um motivo temático recorrente em nossa cultura cujo valor psicológico tem sido singularmente negligenciado por algumas razões que observaremos a seguir.
Há muitos anos atrás, um colega me confidenciou a sua enorme perplexidade e frustração quando, ao inicio de sua análise junguiana, emergiram em seus sonhos imagens relacionadas ao futebol tão contrárias às suas expectativas de sonhos "profundos e significativos". Igualmente, quando comentei com um colega que iria escrever sobre aspectos psicológicos ligados ao futebol, recebi um olhar de desaprovação e desapontamen
To.
Essas duas manifestações revelam a nossa atitude depreciativa ao associarmos o futebol com superficialidade.
Outra insuspeitável variável advêm do fato de que a Psicologia do Inconsciente se dispõe a tratar de assuntos mais sensíveis e complexos.
Colabora igualmente o fato do futebol ser um esporte, um jogo, algo ainda relativamente novo como objeto de estudo da Psicologia.
Ademais, a maioria dos terapeutas pertence ao gênero feminino, o que converge nessa mesma direção não sem razão, uma vez que o futebol é originariamente um "motivo de gênero", gerando desde um compreensível afastamento feminino desse tema "masculino" até atitudes de certa estranheza ou desinteresse.
Por "motivo de gênero" estou me referindo a presença de um tema que se manifesta com relativa constância e recorrência ao longo do tempo, em torno do qual gravitam idéias e imagens ligadas a determinadas tonalidades afetivas, caracteristicamente significativa dentro do universo do gênero masculino.
Por último cabe salientar a negação da agressividade contida pertinente ao futebol , filtrada nas transmissões de rádio e tv e mascarada pela plasticidade mágica do futebol brasileiro.
O futebol, hoje praticado por um número estimado em torno de 200 milhões de pessoas em todo o mundo, encontra suas raízes em extratos genealógicos de duas ordens: um remoto e mítico, expresso nos jogos patriarcais das ligas masculinas e outro mais específico, ligado a própria historicidade do esporte.
Com os jogos patriarcais clássicos, o futebol guarda estreita vinculação com as competições entre cidades, fratrias ou Estados como aquelas finamente descritas na mitologia grega , romana e outras. Estas festividades anuais reuniam os melhores homens que competiam em diversas modalidades desportivas em homenagem a uma divindade local ou nacional ou mesmo em memória a algum renomado herói: pedestrianismo, equitação, lançamentos de disco, corridas com bigas, pugilato, salto e tantas outras, exaustivamente narradas e descritas (como por exemplo, nos Jogos Pan-helênicos), que fizeram parte do entrecho de inúmeros mitos de herói como também teceram o pano de fundo na formação da identidade dos povos da Antiguidade, onde esses jogos cíclicos faziam parte nas intrincadas relações geopolítica e interculturais entre povos e nações vizinhas.
Com o processo de secularização gradual do mundo ocidental, a realidade dos jogos e competições foi se deslocando do âmbito mítico-religioso para o institucional. Estes passaram a figurar como área de prática de educacional e de entretenimento e lazer, desconectando-se do seu valor espiritual original. Ainda assim, fragmentos e corruptelas das gestas do culto de herói ainda encontraram solo fértil nas nossas psiques e nos campos de jogo, permanecendo refratárias a racionalidade, como bem o demonstra a nossa inesgotável capacidade de glorificação dos atletas bem sucedidos nos diversos esportes.
De outra parte, a genealogia específica do futebol registra, já na Idade Média, histórias e lendas de verdadeiras batalhas campais entre cidades e vilas na Europa, tendo uma bola como elemento de disputa, onde os registros são carregadas de truculência e violência desmedidas, especialmente na Itália com o nome "giuoco del cálcio".
Modernamente foi, no entanto, na Inglaterra, onde o esporte foi devidamente organizado em ligas no início da segunda metade do século XIX , com a fixação de critérios e regras após a sua separação de seu co-irmão,o rugby em 1823 Essa codificação em 17 regras, composta desde 1877 , hoje sob a orientação da International Board, orgão da FIFA (Federação Internacional de Futebol Association), regula um jogo forte e viril, sujeitando a agressividade e furor dos jogadores em busca da vitória.
Com a transição gradativa do caráter amador inicial para a profissionalização, ao futebol foi agregado também um caráter comercial além do desportivo.
O esporte desacralizado por um lado e controlado por regras patriarcais de outro, transformou-se, enganosamente, num jogo insípido e lúdico para o entretenimento e o lazer familiar.
O que sentimos, no entanto, quando vamos a um campo de futebol é surpreendentemente nada insipido: somos, em maior ou menor grau, acometidos pela irrupção de material emocional primitivo e arcaico devidamente constelado pelos elementos eliciadores dessa situação arquetípica. Neste clima de arena, entramos em contato com uma gama de emoções, idéias e sentimentos dos mais variados matizes, que vão desde o ódio, desejo de vingança, sentimentos de despeito e frustração, até vivências, no polo oposto, impregnadas de prazer e êxtase, por vezes podendo atingir estados anímicos sublimes vinculados ao sentimento de fraternidade e solidariedade.
- Isso é uma privada a céu aberto!! Todos põe tudo para fora!! - exclamou um amigo não afeito a frequentar os campos de futebol. De outro lado, as pessoas se abraçam, riem, cantam felizes quando um gol do seu time ocorre.
Ali nos encontramos nós, mais uma vez e sempre, às voltas com os eternos problemas humanos: luta pela vida, luta pelo domínio do imponderável, pelo território adversário, em busca da vitória e da fama, ao mesmo tempo em que combatemos o nosso secreto temor do fracasso, o nosso medo, o nosso sentimento de inferioridade.
Nossa identificação psicológica, muito além da aliança consciente que temos com o nosso time e suas representações, alcança zonas mais profundas em nossa alma, ativando aspectos eminentemente emocionais do nosso psiquismo.
Dentre eles se destaca a agressividade. Nos surpreendemos especialmente com o contato visceral que inexoravelmente se estabelece entre nós e esse fator, interna e externamente: ele nos captura, literalmente nos possui, assustando com a sua presença e com os altas intensidades atingidas. Ficamos, na maioria das vezes, inconscientemente reconectados a determinadas forças espirituais arcaicas, dentre elas esse temível fator, sem que saibamos em geral como lidar bem com ele. De certa forma todos nos permitimos, em alguma medida, um certo grau de vivência dessa agressividade, comedidamente se possível, mas nem sempre dentro dos parâmetros cabíveis. Ela se manifesta, desejavelmente, nos "cantos de guerra" das torcidas , nos hinos dos clubes e assemelhados. Ainda tolerável e parcialmente aceitável, na incontinência verbal expressa através dos xingamentos, provocações, deboches, gozações, ironias, sarcasmos.
Esta é a função catártica; a privada a céu aberto mencionada acima.
O mesmo também ocorre, muitas vezes, vertiginosamente dentro de campo entre os jogadores, técnicos e árbitros, o que nem sempre pode ser facilmente perceptível.
Dentro do campo de jogo, a agressividade usualmente transcende o plano verbal e se espraia em choques físicos faltosos muitas vezes desnecessários e outras vezes dolosos, nem sempre sutis, em desafios explícitos, intimidações, revides, provocações recíprocas e uma infinidade de ofensas a integridade moral do adversário. O clima de tensão e de confronto frequentemente tende a ser abusivo. Viceja, portanto, neste aspecto, um conjunto de regras não-escritas, informais, conhecidas e seguidas por todos os atores do espetáculo,as quais complementam as oficiais Muitas vezes, no entanto, todos os limites razoáveis de tolerância são ultrapassados e o estopim é aceso, fazendo submergir toda e qualquer concepção de sensatez como é atestado, larga e exemplarmente, nas costumeiras liberações incontidas de violência explícita entre jogadores, dirigentes e torcedores, fato este que tem ocorrência contumaz em todas as praças esportivas do mundo, e que significa sempre a vitória do deus Ares/Marte sobre os outros fatores inter-atuantes no fenômeno.
Os jogos coletivos ou individuais que envolvem confrontação física em geral tem o condão de mobilizar este fator de tão difícil manejo, pois ele, antigo habitante da Sombra Coletiva e Individual, quando liberado, aparece deformado, como em sua expressão máxima que é a violência. O futebol mobiliza a agressividade mais exatamente pela negação do fator, ou seja, pela exclusão na consciência da inevitabilidade de sua participação. Sim, Marte/Ares campeia; ele está sempre presente, não sozinho, é claro, mas ele sempre está lá a nos incitar, nos instigar, a mobilizar a nossa Sombra e a da platéia, gerando graves problemas os quais até hoje não solucionados nos estádios desportivos.
Ele está lá em campo sim, inevitavelmente, mas talvez para ser superado pela inteligência: inteligência associada a arte, a estratégia e a habilidade dos jogadores. Como sabemos, Marte sempre foi pouco querido na própria Grécia, eternamente condenado a participar para ser pedagogicamente derrotado. Isso faz parte do conjunto dos valores que integram o nosso patrimônio cultural e que colabora para coibirmos a expressão da agressividade. A dificuldade é que ela acaba sendo reprimida ou negada, como no futebol,trazendo mais problemas por atuar sombriamente.
Neste sentido particular o nosso futebol, com o seu peculiar traço mercurial - macunaímico, fruto da generosa e indispensável miscigenação racial, ao tempo em que teve a sua qualidade já consagrada internacionalmente, trouxe uma enorme contribuição.

Responsável pela invenção mágica dos truques, dribles, travessuras, malandragens e sempre com imensa alegria, a mestiçagem brasileira tornou o futebol uma arte, onde predominaram a habilidade e o talento sobre a rudeza.
Sem aquelas condições físicas próprias e necessárias para enfrentar a truculência e virilidade do confronto físico naquele jogo chamado de nobre , recentemente introduzido e praticado só por brancos, os negros e os mestiços gradualmente foram participando tão somente para completar os times, ainda que em situação absolutamente desigual já que as faltas cometidas eram penalizadas com um adicional direito a revide físico por parte do branco.
Para se esquivar desse confronto assimétrico, o caminho inventado foi o natural desenvolvimento de manobras e técnicas evitativas de sobrevivência dentro do campo, baseadas estas na exímia arte de enganar, burlar, ludibriar e envolver o adversário, gerando esse padrão tão belo de sinuosidade, maleabilidade e maviosidade típicos do futebol brasileiro; o jogo passou a ser menos anguloso e retilíneo e se tornou mais ziguezagueante, matreiro; dengoso muitas vezes, cadenciado outras, mas sempre insinuante.
A mercurialidade do futebol brasileiro indica a presença arquetípica do trickster ativado, fator pré-patriarcal por excelência, que traz esse colorido moleque, transgressor e malandro, traduzido também pelo assim chamado "jeitinho brasileiro", elemento constitutivo da identidade nacional. É com essa natureza marcadamente astuta, solução tropical, que em grande escala foi e continua sendo superada a virilidade marcial própria do jogo, introduzindo uma qualidade anímica a esse esporte tão rijo e duro, como que lhe oferecendo um contraponto necessário e harmonizador.
Portanto, reconhecer os componentes espirituais subjacentes ao futebol e as suas imagens pode se tornar uma tarefa frutífera para uma melhor compreensão da alma brasileira, de um lado e do gênero masculino, de outro..
O mundo do futebol, notadamente visto através da perspectiva do motivo de gênero, torna muito mais fácil a compreensão e manejo de identificações, contra-identificações e das projeções de aspectos de Sombra tão importantes na abordagem terapeutica da Psicologia Analítica..
Isso, por exemplo, fica mais evidente no atendimento de meninos e a - dolescentes, onde a necessidade de discriminação, fortalecimento e consolidação da estrutura egóica em formação é constituivamente fundamental. Aqui as imagens e as referências ao futebol não raramente são abundantes e a sua importância dificilmente pode deixar de ser reconhecida.
O compartilhamento masculino do discurso do futebol, tão característico quanto típico, é outro exemplo irrefutável de sua importância funcional como elemento sinalizador de pertinência ao grupo masculino, vivenciado como naturalmente próprio, onde o feminino, independentemente dos esforços em contrário, usualmente é, consciente ou inconscientemente, excluido.
Essa exclusão constuma gerar vários padrões característicos de resposta de ajustamento do gênero feminino, que vão desde uma compreensão consentida, acompanhadas ou não de tentativas de compartilhamento, sentimentos de mágoa, queixumes conformados, sentimentos de inferioridade e de rejeição até reações de animosidade.
Há, nascente, uma nova resposta feminina à questão, em franco desen- volvimento, que é a tentativa de apropriação do mundo do futebol através da sua prática, como uma forma de participação e uma maior compreensão do seu funcionamento, democratizando este universo. Assim, temos visto crescer campeonatos locais e mesmo internacionais de jogos de futebol feminino ( por exemplo, a 1º Copa do Mundo em 1991 na China e a sua inclusão nos Jogos Olímpicos de 1996 e 2000) como também na modalidade extremamente praticada no Brasil do Futsal, o futebol indoor, jogado em quadras com times de 5 jogadores, onde a presença feminina é cada vez maior. Elas participam menos raramente, mas com a mesma função coadjuvante com que os negros desempenharam na introdução do futebol no Brasil por Charles Miller nos últimos anos do
Século passado.
Este novo padrão tem mostrado duas vertentes de desenvolvimento ainda embrionárias, as quais muitas vezes se mesclam: um padrão marcadamente imitativo e masculinizado, ou seja, onde o Animus detém a condução plena do jogo, e outro, onde já se observa a tendência contra-identificante, mais criativa, germinando um modo próprio, feminino de jogar, algo que já ocorrera em outros esportes como no basquetebol e no voleibol, situação esta própria de um processo em implantação e em busca de diferenciação.


•publicado por Psicopombo, ano IV, nº2, Abril/Maio 1998, boletim da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica., resumidamente com o título O Fator Espiritual do
Futebol.

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