terça-feira, 30 de setembro de 2008

PABLO e VICTÓRIA

Ruído na fechadura da porta da rua.
Arre! Finalmente alguém chega nesta casa! Fico agitado quando chega alguém, não posso evitar. Depois passa...
- Hola Pablo, estás ahí?
- Si, si, si.
Claro que estou Vic... Eu não ia fugir, não é mesmo? Toda vez que você chega da rua me faz estas perguntas idiotas. Aonde eu iria?
Ela se aproxima de mim com a sua cara redonda e duas fileiras enormes, cheias de dentes grandes e alvos.
- Mi querido! Cariño mío, como estás, mi amor? Vayamos a oir música, Pablito – sai cantarolando em direção ao aparelho de som.
- Si, si, si.
Evidente que sim Vic, o que você quiser... Você é a dona da casa, lembra-se? Eu nunca me esqueço deste detalhe: ele condiciona a nossa relação.
O som rola com sotaque cubano.
Vic adora Compay Segundo, um mestre da velha guarda que encantou e ainda encanta o mundo mesclando suas canções com músicas tradicionais da Ilha. Vic veio adulta de Cuba onde conheceu Paulo Henrique, um brasileiro que tinha ido estudar Ciências Sociais na Universidade de Havana. Enamoram-se. Paixão pura. Ela sabia que ele jamais ficaria em Cuba. Vic abandonou o curso de Pedagogia e quando Paulo acabou a faculdade, ela veio com ele, casada. Depois de algum tempo no Brasil nasceu Martina, uma graça de menina! Há dois anos, Vic e Paulo Henrique se separaram e agora moramos nós três neste cubículo...
Daqui a pouco a van chega da escola trazendo Martina e a Vic já terá preparado o almoço. Com a Vic na cozinha, eu tenho um tempinho a mais de paz. Ando muito reflexivo ultimamente. Positivamente não gosto daqui! Estou farto! Sinto que também sou um estrangeiro, o que não é completamente falso; quer dizer, sou em parte. Explico: eu não nasci aqui; vim de fora, como a Vic, mas do interior do Brasil. Sou do mato. Eu vivia solto, livre... Passei meus primeiros tempos entre arbustos, árvores frutíferas, flores coloridas, poeira da terra... Havia a praçinha, água de bica, a venda, o armazém onde eu entrava furtivamente uma vez ou outra. Brincava sempre com prazer, alegria; sozinho ou com os meus irmãos... Não que não houvesse aqueles perigos quando se é pequeno, indefeso; havia sim, a vida sempre tem arapucas, mas com cuidado, eu conseguia me divertir. Ah! Que saudade... A natureza com suas cores e matizes! Mil azuis do céu pincelados com nuvens de tons diferentes de branco. Cheiros divinos! Sabores diversos! Sensações deliciosas do mato... A brisa suave, o Sol tênue dos fins de tarde; a chuva leve, de preferência… Ah! Não quero parecer um saudosista, mas eu realmente amava aqueles tempos, aqueles lugares... Podia não ser uma completa maravilha, mas era, digamos, mais natural.
Bem, depois... Depois me pegaram. Fui forçado; vim contra a minha vontade. Sofri. Nada pude fazer. Era muito pequeno; não consegui fugir. Fui trazido para cá. Eu tive que me adaptar à nova realidade, senão morreria. Aqui há muito barulho, cores feias, sujeira, muita gente, nada natural... É uma selva cinza de cimento. Até o céu é da cor de chumbo. O fato é que agora aqui estou: preso num apartamento de um dormitório com uma cubana e uma menina de cinco anos. O apartamento é minúsculo; eu durmo na sala e a Martina dorme com a mãe. Pelo menos tenho privacidade. Que adianta? Na muda nada.
Odeio tudo isso; odeio ter que enfrentar a carência afetiva da Vic que sobrecarrega a Martina e eu, mais a mim do que a menina. Sei que fiquei no lugar do Paulo. Não é fácil, não! De minha parte, tenho dado toda a atenção possível para a Vic; eu sei, ela precisa, está muito ferida. Mas há que se convir que às vezes é difícil dar conta dessa torrente de amor de uma mulher magoada, com uma filha pequena e morando fora do seu país.
- Pobrezito, estás con hambre! Cálmate, cariño. Sé el que le gusta! – ri feliz.
- Si, si, si.
Vic pensou em voltar várias vezes para Cuba; sofreu e chorou muito com a separação. Eu acompanhei tudo pois já estávamos juntos. Fiquei ao seu lado em sua dor. Meu coração ficava despedaçado, porém eu não pude dar mais do que minha atenção. Cheguei até cantar para ela várias vezes. Tinha a impressão que acalmava a Vic. Sua mãe, dona Etelvina, chegou a vir para cá com Madalena, a caçula, com intenção de levar filha e neta para casa, mas a Vic... A Vic é muito orgulhosa, não quis voltar derrotada para La Habana. Dizia-me sempre:
- Pablito, mírame bien, no desisto nunca; voy a trabajar, pelear, erigir mi vida. Bien… después si, creo que podré volver a Cuba. Volver como vencedora, como mi nombre Victoria enseña, no sabes? E assim tem sido a sua vida: luta sem trégua, luta renhida como se dizia antigamente.
Campainha soa e soam batidas ansiosas.
É a Martina que chegou. Que linda!
- Mamãe, mamãe. Estou com fome!
- Mi querida! Estaba esperándote! Bueno, primer de todo, hija mía, las manos... lávatelas y tome asiento. Hoy tenemos carne con legumes.
- Pablito, na escola eu fiz um desenho da nossa casa com você, eu e a mamãe e...
Martina continuou falando alguma coisa e correu para o banheiro obedecendo a mãe.
Almoço apertado na única sala do apartamento, sala multiuso: para comer, a Martina estudar, a Vic passar roupa, ver TV...
Depois do almoço Martina fica na casa da dona Gertrudes durante a tarde e Victoria pega a filha quando volta das aulas de espanhol. Eu fico por aqui. Como sempre. É minha sina. Queria tanto poder sair, poder dar os meus vôos pelo mundo, ser livre como fui um dia... Faltam-se os meios para luta, para me libertar. Diferente da Vic.
Toca a campainha.
- Olá Dona Gertrudes, espera un rat.., es decir, um minutinho... – Vic abre a porta e rapidamente traz a Martina do banheiro com os dentes escovados.
– Vete mi amor... Abaixa-se para beijá-la.
- Obedeça dona Gertrudes, heim?
- Pode llevar a minha niña, dona Gertrudes... Quando eu chegar eu passo en su departamento e pego a minha linda.
Ainda há tempo para Martina me fazer tchau com sua mãozinha antes de desaparecer levada pela vizinha. Vic fecha a porta e vai para o quarto se arrumar. Em poucos minutos ela já está na porta, maquiada, pronta para ir trabalhar. Despede-se, como todos os dias, com aquelas frases idiotas.
- Tchau pablito! Cuida bien de nuestro hogar, mi querido!
- Si, si, si.
Claro que sim Vic; você manda... Ficarei para cuidar da tua casa. Tenho outra opção?
Fico sozinho toda tarde. Estou acostumado. Meu único prazer é aquela janela. Ela me traz um pouquinho do mundo que tive e perdi. É uma fresta por onde posso apreciar a vida, lá fora. Aqui dentro, não há vida. Tudo é um simulacro. Uma tristeza.
Vic, eu te odeio. Odeio por me aprisionar, por me amar sem amor de fato e por ter me dado este maldito nome Pablo para um passarinho brasileiro.

rubens bragarnich