sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

A psique inquieta é o eixo do mundo!

“...o tempo não pára, não pára..."

Cazuza

"_Aí, meu Deus! Aí, meu Deus!
Vou chegar muito atrasado!”

[Coelho Branco in Alice no País das Maravilhas]
Lewis Carroll


Inquietação!
Vivemos um período histórico de extraordinária aceleração do tempo, uma era de grande sinergia, dinamismo e movimento। Isso se espraia por todos os âmbitos da assim chamada civilização ocidental sendo perceptível através das dimensões do objetivo e do subjetivo, do material e do virtual, do social e do individual, do local e do global, do literal e do simbólico।
Esta aceleração foi detectada e tem sido estudada em profundidade nas Ciências Sociais, na Filosofia e na Psicologia Analítica, onde não passou despercebida ao olhar atento de James Hillman, Raphael López-Pedraza, Amnéris Maroni e de muitos outros.
Esta aceleração cultural é vista então como um fenômeno coletivo, claramente identificável, irregular em sua manifestação, mas consistente e irreversível.
Há uma certa concordância por todos os estudiosos que este ciclo histórico teve o seu inicio mais ou menos em torno da segunda metade do século XX. Ela tem se tornado um fator cada vez mais visível e evidente em nosso cotidiano, em todas as classes e estamentos sociais, sendo cada vez mais percebida e sentida nas médias e grandes cidades e é esmagadoramente evidente em megalópoles como São Paulo, onde exerço o meu trabalho clínico.
O processo adiantado do capitalismo já ao nível do acelerado processo da globalização econômica, com a implementação tecnológica geradora da fantástica evolução das mídias, da telefonia e do computador pessoal e de conseqüente uso comunicacional e informacional, interferiram excepcionalmente na experiência subjetiva do espaço e do tempo, variáveis absolutamente essenciais ao funcionamento e orientação da consciência individual e coletiva. Atingimos o estado de pleno emprego do tempo: aproveitamento excepcional das possibilidades latentes, modelagem comportamental para atingir o máximo da perfomance pessoal, ampliação e assimilação progressiva do “espaço” pelo incremento de tarefas, ações e compromissos diários, quantas vezes sobrepostos, simultâneos e substituíveis entre si.
Vivemos enredados no furor agendi para um hiper-aproveitamento existencial, pois este é o espírito do nosso tempo. Experimentamos uma espécie de “esticamento” do tempo para “caber tudo” e ainda assim sentimos que ele está correndo rápido, sempre vertiginoso... Jovens não querem dormir para não perder tempo; e de certa forma, hoje, todos nós também não queremos perder tempo, não queremos perder nada!! Falamos então, de fato, de uma revolução civilizatória e não mais apenas de uma civilização em transição, como nos dizia Jung em sua época; tentamos compreendê-la, explicá-la, nomeá-la: chamamos isso de Pós Modernidade ou Modernidade Tardia ou outro nomina.
O individuo contemporâneo percebe que a sua vida está mudando em todos os aspectos: nas relações interpessoais, nas relações de trabalho, na família, nas modificações rápidas dos costumes, na alimentação, nas novas maneiras de se lidar com o amor e com o sexo (nas assim chamadas relações líquidas), no espaço próximo de convivência, na experiência local e, ao mesmo tempo, na percepção maior da política e da economia, nacional e internacional, hoje muito mais interligadas.
O indivíduo deste novo tempo aprofunda as conquistas da modernidade: confia na razão, crê na evolução da técnica, se apóia nos avanços da medicina, vive perplexo e atônito com a complexidade e as contradições das relações do mundo do trabalho e do dinheiro; quando consegue, ele trabalha e trabalha demasiado. Mas invariavelmente sucumbe ao lodaçal do consumismo e na hiper-informação. As velhas utopias, fontes de referência e de significado, se esfacelaram enquanto as antigas tradições religiosas, ainda que cambaleantes, prosseguem perseverantes, geralmente na contramão desse processo cultural. As contradições e conflitos parecem cada vez mais acirrados.
À aceleração do tempo corresponde a retração ou encolhimento do espaço pelo processo paradoxal da sua gradativa assimilação e conquista: a capacidade organizacional, grupal ou individual de exercer o poder através da velocidade e da mobilidade, tanto física como virtual, se torna, surpreendentemente, um critério muito importante de status e de ascensão social; poder circular, poder adquirir serviços e espaços, movimentar-se concretamente ou virtualmente é o “bem de consumo” mais desejável. O mundo tornou-se literalmente pequeno!!As classes dominantes mapeiam o espaço urbano, redefinindo incessantemente a geografia da opulência com medidas de proteção e segurança, defendendo-se da movimentação intensa de indivíduos e coletividades excluídas. Jung não conheceu este novo tempo; ele o intuiu e formulou claras indicações de que o ciclo do aéon cristão estava se esgotando ao fim da era astrológica de Peixes; que estávamos as voltas com uma civilização em transição. Não pôde, entretanto, vivê-la; ele foi o profeta de grandes transformações que viriam e lançou os fundamentos para que pudéssemos tentar entendê-las.
É neste contexto cultural, multifacetado e complexo, onde encontramos o nosso sujeito como paciente em nossos consultórios. E como o encontramos? O que ele nos traz? Quais são os seus conflitos, os seus desejos? Quais são as suas queixas e o seu sofrimento? O que o inconsciente está expressando? O que dizem os seus sonhos? Será que a alma contemporânea se compraz com esta sinergia, movimento e velocidade, ela mesma criadora dessa condição? Esse esforço adaptativo num mundo em constante movimento; a importância da competência, a inevitabilidade da competição, a busca da excelência, a confiança na racionalidade, não são acompanhados de muito medo, desamparo, angústia e uma inquietação ansiosa intensa? Como compatibilizar o tempo individual kairótico e o tempo cronológico cultural?Nosso mundo é marcado em deslocamentos intensos de valores: da fé para o pensamento racional, do espiritual para a materialidade e consumo maníaco, da análise profunda para as psicoterapias objetivas ou seitas religiosas não raramente oportunistas; é o mundo ruidoso das soluções lógicas, competentes e principalmente rápidas.
O nosso paciente é o espelho perturbado de um mundo globalizado aparentemente conturbado, onde tudo parece possível, tangível, conquistável, muito embora esta ativação psíquica tenha mais é o condão de iludir e agitar a alma de cada um de nós pela falácia da opulência adquirível. A perturbação na alma do mundo parece corresponder à perturbação na anima que se expressa na interioridade individual; sua psique em geral está convulsionada pelo barulho dessa materialidade desmedida, dessa frustração constante; não há tempo para o silêncio, para a reflexão, para uma vivência interna profunda e significativa. A alma precisa de tempo e espaço com qualidade para ser cultivada, ainda que de novas e criativas maneiras; necessita sacrifício que ninguém parece estar disposto a oferecer mais; vive-se assim à deriva psicológica num mar de agitação e ansiedade. Será possível imaginarmos o labor alquímico feito em retorta aquecida em um forno de microondas?Nosso tempo certamente pode ser expresso simbolicamente através da imagem alquímica de uma ampla Solutio cultural, que em seu aspecto mais negativo, tende a incrementar a inconsciência, a liquidificar as relações e a diluir a alma na materialidade. Uma imagem clássica de Solutio é a travessia hebraica do Mar Vermelho, que pode nos servir como metáfora-guia dessa experiência coletiva viva.
Sobre ela, Jung menciona no Mysterium Coniunctionis o comentário gnóstico perático: “ O Mar Vermelho engoliu os egípcios, mas egípcios são todos os ignorantes...O Mar Vermelho é a água da morte para os inconscientes, mas para os que são conscientes, é a água batismal do renascimento e transcendência”.
Esta amplificação nos aponta diretamente para a idéia central de que não podemos perder de vista, nestes tempos, a importância fundamental daquele que é o valor humano mais precioso, qual seja, a liberdade, sob pena de permanecermos na escravidão dos Faraós ou afundarmos no inconsciente, sendo tragados pela materialidade e velocidade que dominam o mundo contemporâneo. Podemos olhar esta voracidade de tempo como uma manifestação do self, um pedido de socorro coletivo, da mesma forma que a neurose é um pedido de socorro da alma para o individuo, mas que pode não estar sendo ouvido ou compreendido em sua profundidade. As chances de destruição humana e do planeta talvez sejam a expressão desse pedido para que o homem pudesse parar e olhar verdadeiramente para si mesmo e re-descobrir a sua vocação no cosmos.Caminha-se assim apenas com a luz da esperança neste processo encerrado no mais absoluto e indecifrável mistério, sem perder a consciência da nossa natureza e do nosso destino, com a crença segundo a qual cada pequena transformação que ajudamos a promover com cada um dos nossos pacientes, contribui com a sua parcela para a alma do mundo.




Ubatuba (SP), 2005



Referências Bibliográficas

BAUMANN, Z. AMOR LÍQUIDO, Jorge Zahar Ed., RJ, 2003.BAUMANN, Z. Globalização e as conseqüências humanas,

EDINGER, E.F. The Mysterium Lectures, Canada, 1995, Inner City Books

GIEGERICH, W. Matanças, 1992, disponível em: http://www.rubedo.psc.br/

HILLMAN, J.; VENTURA, M. Cem anos de psicoterapia e o mundo está cada vez pior 1992, Summus EditorialJUNG, C.G. Obras Completas, vol.10, RJ, 1986, Ed.Vozes

LOPES-PEDRAZA, R. Ansiedade Cultural , Ed. Paulus, 2004

MORONI, A. Jung na era das catástrofes in Viver Mente&Corpo –Coleção Memória da Psicanálise, Duetto Editorial, ed. 2, 2005, págs. 30 e segs.




quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Exercício sobre construção de personagem

Jailsson do Nascimento.
Adulto, idade indeterminada.
Nordestino.
Morador de rua.
Catador de papel.



1º momento: tristeza

Jailsson está sentado no chão com as costas apoiadas na parede, curvado. Puxa desajeitadamente a foto 3 x 4 amassada do bolsinho da camisa amarrotada. Fica olhando detidamente para ela. Com a manga da outra mão limpa os ciscos grudados. Olha profundamente a fotografia. Suspira. Seus olhos se congestionam e vai esboçando cara de choro. Sente um aperto no meio do peito. As pálpebras tremem, as lágrimas escorrem pelos sulcos da face e o choro vai aumentando até se tornar convulso. Com os olhos encharcados, a sua visão fica embaçada e perde o foco. Nem precisa; não importa: Jailsson está mergulhado na imagem de Gilsimara que guarda dentro de si.


2º momento: delírio

Jailsson está com o olhar parado, vazio, distante Parece que pensa. Vai ficando com cara de desconfiado. Escuta uma voz. Apura o ouvido para escutar melhor. É de homem, tem certeza. Não sabe de onde ela vem. Fica procurando por todos os lados. Não acha nada. Desiste. A voz, no entanto, fala em seu ouvido. Incomodado olha para cima, andando em círculos. Pergunta:
- O que é que você quer?
Pausa.
- Não tô entendendo.
Pausa
- Quê? Hã?
Presta a atenção em alguma pergunta que lhe é formulada. Fica bravo e responde:
– Você está pensando o quê, cara? Vá se foder! Não estou mais com ela. Ela foi embora, me deixou...
A discussão prossegue num diálogo patético.
Mais adiante Jailsson pede silêncio:
- Psiu. – sinaliza com o indicador
- Espera aí um pouquinho; está passando... está indo...está vendo aquele avião que está passando? Psiu! Fica quieto, pô!
Após alguns segundos:
- Pronto. Você viu? Não te falei? Ela está lá, está indo embora, para lá longe. Não volta. Vê se não me enche mais o saco!
A conversa acabou e Jailsson vai se acalmando. Senta-se no chão lentamente com a cabeça baixa, silencioso. Os seus cotovelos apoiam-se nos joelhos dobrados e os braços caem pendidos para frente. Fumaça se aproxima e se acomoda encolhendo a cauda. Coloca o seu focinho sobre as patas dianteiras e fecha os olhos.


3º momento: sofrimento físico


Durmo encolhido com um cobertor que me cobre a cabeça. Zzzzzzzzzz
- Hum, hã... Que é que está acontecendo? Que dor desgraçada!
Jailsson está acordando, está confuso, sente muita dor.
- Está doendo a boca. Eu acho que estou todo inchado – vai apalpando o lado esquerdo de sua mandíbula.
Sente que a barba está rala e áspera, mas não se importa: a dor é infernal, está insuportável:
- Cacete! Que dor filha-da-puta! – pragueja.
Anda de um lado para o outro com a mão apertando o rosto, amaldiçoando:
- Que merda! Doem os ossos!
Não agüenta mais; chuta uma pedra com raiva.
A dor continua lancinante. Bate a cabeça na parede. Morde a mão em desespero. A mordida dói por pouco tempo, mas vai se desvanecendo e a dor na boca volta com todo ímpeto.
- Pelo amor de Deus! Senhor, me ajude!– implora e cai de joelhos.




4º momento: nostalgia

Sentado na calçada com o costado na roda da carrocinha, Jailsson ouve o ruído do Fumaça lambendo um velho osso. Enquanto isso gira em sua mão um fino talo verde de uma plantinha arrancada do ajardinado mal cuidado da praça. Seus olhos estão lânguidos e parecem menores plasmados do prazer de lembranças felizes de sua infância em Caruaru.
Jailsson não está mais ali; é o moleque que corre pelo quintal atrás das galinhas que fogem em disparada. Mais no canto perto do cajueiro, a malhada muge incomodada com a bagunça. E o garoto ri e gargalha até ficar sem fôlego
– Jailsson! Vem para a mesa, menino! – soa a voz de dona Maria.
– Não se esqueça de lavar as mãos – recomenda.
Jailsson vem maviosamente, devagarzinho, sorvendo o cheiro forte do feijão com carne seca que a mãe preparara. A tapioca está deliciosa. A boca se enche d’água. Dá para sentir o gostinho. Jailsson estala a língua. Às vezes o seu Jerônimo não almoçava junto com a família na cozinha devido aos negócios na cidade. Na roça o menino carpia e plantava. Sempre perto do pai. Ah! Vida boa! Suspira profundamente e isso o traz de volta ao chão. Faz cara feia.
Retorna para Caruaru. Vê o aro que ia tocando com um pau pela estrada, o jogo da finca com a molecada na terra mole depois da chuva. Brincar, jogar bola de capotão, fazer um gol. Sentir o prazer de viver.
Era tudo bom, tudo feliz. - reflete Jailsson com saudades. Eta tempo bom! Tempo que não volta mais. A gente vem para a cidade grande iludido, imaginoso. Acha que vai voltar um dia importante e com dinheiro no bolso. Qual nada! Aqui não é assim não: é vida dura, vida madrasta.

Costela de Anão


Sou uma costela retorcida e deformada. Nada existe neste momento e neste mundo; o que existe é uma costela que dói. É a dor de uma costela. Eu sou apenas o apêndice indigno de uma costela dolorida, uma parte que incomoda, que vira o todo, que me envergonha. Uma feia deformidade é o que sou. Um gauche completo.
Por mais que tente corrigi-la fazendo mil exercícios, ela se move mas não volta ao normal; ela é rija, é osso. Será que alguma vez ela foi normal?
Penso e imagino tantas maneiras e maquinações para curá-la, reeducá-la, fazê-la voltar a sua posição que presumo seja a correta. Nunca consigo por mais que tente. Ela fica soldada, assim torta e denuncia a minha tortice completa. Tortice e tortura.
A costela me tortura. Eu me torturo. Ela me lembra a minha pequenez. Pequenez de anão. Não é a costela de Adão, o arquétipo humano, a base positiva do homem. É costela de anão.
É a marca da deformidade, da inaceitação de mim mesmo, a marca do complexo.
Ela mostra que há coisas em mim que não têm redenção, não têm cura, não têm jeito.
São como as pedras que não se transformam, que permanecem imutáveis por tanto tempo que parecem eternas.
São fixas e rígidas como partes mortas que chegaram antes da própria morte.
Da minha morte