segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Um adágio em Küsnacht

(revisto para edição no blog)

Há um conhecido provérbio coligido da Antigüidade Clássica por Gerhard Gerhards, um clérigo agostiniano holandês, que adotou o nome latinizado de Desiderius Erasmus (28.10.1466 – 12.07.1536), conhecido como Erasmo de Rotterdam, um dos mais notáveis e influentes humanistas da Renascença. Erasmo teve papel importante na revitalização do Cristianismo bem como na revalorização dos textos gregos e latinos clássicos, como nos aforismos dentre os quais um que assim se enunciava: vocatus atque non vocatus deus aderit, que pode ser traduzido como Evocado ou não, Deus está presente ou Evocado ou não, Deus estará presente.

Este pensamento, séculos depois, viria a ser extraído por C.G. Jung do Collectanea Adagiorum, uma compilação de provérbios e aforismos de autores antigos gregos e latinos, obra de juventude de Erasmo publicada pela primeira vez exatamente em 1500.

Ele devia encerrar grande importância e significação para Jung já que foi esculpido, em sua forma latina, no frontispício de sua casa em Küsnacht, sobre a porta entrada. Além disso, também viria ser eternizado em pedra em uma das três inscrições na lápide de seu túmulo no cemitério protestante de Zurique, onde as duas primeiras inscrições se referem a 1º epístola de S. Paulo aos Coríntios (1 COR 15:47), a primeira, verticalmente à direita, Primus homo de terra terrenus (O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre); a segunda, no lado oposto Secundus homo de caelo caelestis (O segundo homem vem do céu, celeste). O provérbio sobre a presença de Deus está disposto em duas partes, na faixa horizontal superior e inferior da pedra.

Jung sempre teve uma relação especial com pedra e inscrições; ele mesmo cunhou na casa e refugio espiritual em Bollingen, à beira do lago de Zurique, várias idéias de Heráclito, Homero e outros em latim ou grego. Em uma das três faces do cubo de arenito azulado onde estão estas inscrições, há uma citação alquímica sobre o significado da pedra que Jung assim traduziu: “Sou uma orfã, sozinha; entretanto, podem me encontrar por toda a parte. Sou uma, mas oposta a mim mesma. Sou ao mesmo tempo adolescente e velha. Não conheci pai nem mãe, pois devem me ter retirado das profundezas como um peixe ou porque caí do céu, como uma pedra branca. Vagueio pelas florestas e montanhas, mas estou escondida no mais íntimo do homem. Sou mortal para cada um e no entanto a sucessão dos tempos não me atinge”.

Quanto ao adágio de Küsnacht, ele tem sua origem em Delfos, na região central da Grécia, mais exatamente no templo e oráculo dedicados a Apolo, o mais famoso de todos os oráculos gregos. Localizado ao sul do Monte Parnasso, era tido como um ômfalo, dedicado ao deus da luz, poesia, música e profecias, sendo utilizado até 390 da nossa era com finalidade oracular. Para lá acorria gente de toda a Grécia para saber do futuro para questões bélicas, políticas, amorosas, da vida privada, instalação de colônias, casamentos, etc.; uma virgem escolhida como a sacerdotisa Pítia, ficava sentada num trípode, um engenho de três pés; entrava em transe por aspiração de vapores e ingestão de folhas especialmente preparadas para o rito. Sua única qualificação era ouvir a questão trazida pelo sacerdote auxiliar, falar e repetir o que o deus lhe ditava. Assim, o espírito do deus se revelava e a resposta era declamada em versos para que os sacerdotes as transmitisse ao consulente. O contexto no qual o provérbio de Küsnacht teria sido enunciado por Apolo é um tanto vago (parece ter feito parte da resposta a uma questão militar), tendo sobrevivido, no entanto, até nossos dias já com uma coloração exclusivamente monoteísta.

Pois bem, no lado esquerdo do corredor que dá acesso à minha sala de trabalho, há uma foto emoldurada com esse ditado em inglês Bidden or not bidden God is present, obtida de inscrição também em pedra trazida de Londres, mais exatamente da Abadia de Westminster. A foto, por falta de luminosidade adequada, por pura sorte, ficou escura, brumosa nos cantos e mais clara no centro, trazendo um ar transcendental e espiritual. O que isto significa para mim?

Tal qual um mezuzah hebraico, que se instala no batente direito da porta da casa de um judeu e que contém uma oração abençoando e protegendo aquele lar, a mensagem recolhida por Erasmo teria para mim a mesma função protetora do mezuzah.

E para Jung, por que fez esculpir a máxima na porta de sua casa em Küsnacht? Seria o locus do desvendamento dos mistérios do mundo do Inconsciente que naquele recinto se revelariam? Poderíamos pensar neste provérbio milenar como uma expressão simbólica que guarda significados ocultos e assim tentar capturá-los em seus aspectos vinculados ao trabalho clínico, uma vez que a ele por Jung foi associado através da

inscrição cunhada.

Um significado que se pode extrair do provérbio é que independente da nossa consciência profissional, extremamente matizada pelo cientificismo e racionalismo que nos configurou, pois somos frutos do espírito de nossa época, há algo muito além do ego, que ali está presente involuntariamente. Esse algo é tudo aquilo que não sabemos ou conhecemos, que nos escapa, que não enxergamos, que não percebemos, literalmente tudo aquilo que nos é inconsciente. Portanto, ele pode ser entendido como enunciando a existência do inconsciente.

Outro significado se refere à energética; no setting terapêutico operam forças poderosas que emanam do fundo psíquico desconhecido, além daquelas que conscientemente acionamos na nossa atividade clínica, com o nosso método e com os nossos procedimentos técnicos. O que sabemos é que elas se expressam em imagens impessoais ou coletivas fortemente carregadas de afeto dos núcleos dos complexos, ou seja, dos chamados arquétipos, mui propriamente bem representados nas mitologias por deuses

Há mais uma acepção do provérbio que sugere a existência de uma regência superior em nosso labor analítico, que nos estipula uma medida para as nossas dimensões, nos restringindo aos limites de modéstia e humildade; ainda que possamos obter sucesso em nossos esforços junto aos nossos pacientes, estes se dão sempre em estreita observância a um fator maior, abrangente, poderoso, algo acima de nós próprios. Isso também pode ser expresso equivalentemente por outro provérbio do mundo médico: “Eu trato e Deus cura”, verdadeiro antídoto que nos afasta daquilo que foi descrito na mitologia grega como hybris, qual seja, a danosa identificação com o poder de cura, que poderia nos levar ao estado de inflação arrogante e vaidosa, como se fossemos semelhantes a Deus ou aos deuses.

E, finalmente, me ocorre um último significado que se refere o ditado délfico em sua acepção mais literal, qual seja, a presença de um determinante incognoscível divino, onipresente e onisciente, o qual nós chamamos de arquétipo do Self. Colocado à entrada do local onde trabalhamos, nós o evocamos e o denominamos “Self terapêutico”, por atribuir-lhe a função maior de cura e desenvolvimento psicológico.

Neste contexto, significa também que é exigido a personalidade integral do terapeuta como ferramenta a serviço desse Self terapêutico. Todos sabemos como é difícil arte de trabalharmos num campo psicológico árduo, parcialmente consciente e parcialmente inconsciente, funcionando dentro do fio tênue entre o que é consagrado pela ciência formal e aquilo que não é, quando nos movemos na penumbra, na escuta pari passu com as narrativas, com os silêncios de nossos pacientes, na intuição e tendo as vezes tão somente a fé de que Jung nos fala em A Prática da Psicoterapia, onde nos diz que a fé do terapeuta em seu trabalho é fundamental para o bom andamento do trabalho clínico. A compreensão desta sujeição ao Self pode ser a única crença que nos resta nestes momentos de vida profissional, quando tudo parece árido e sem solução. Aí o inconsciente produz os seus símbolos que emergem para o espaço terapêutico e novamente se abre um caminho e a solução para um conflito aparentemente intransponível. É graças a essa presença arquetípica que chamamos Self, e que poderia com certeza ser mais um dos nomes de Deus, que o processo caminha.

Tornarmo-nos conscientes desta presença e o evocarmos voluntariamente no setting terapêutico é dissolvermos as barreiras históricas erigidas entre a clínica e a espiritualidade e tê-lo como nosso aliado poderoso.

Rubens Bragarnich

Bibliografia:

Christian,G. Le musée imaginaire de Carl Gustav Jung, 1998, Ed. Stock

Compton’s Interative Encyclopedia, 1996

Erasmus, D.Colletanea Adagiorum, 1500/1508

Hill, J.Jung na torre de Bollingen, filme, Arthouse Film, 1950,colorido, 30 min

homepage.mac.com/cparada/GML/Delphi

Jung,C.G. Obras Completas de C.G.Jung, Vol.16, Ed. Vozes

Jung, C.G.Memórias, Sonhos e Reflexões, A Torre, 5º ed., Ed. Nova Fronteira

Knight, K.Catholic Encyclopedia, 1909, Vol.5, Robert Appleton Company, Online Edition, 1999.



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