sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

O SONHO DE SÓCRATES (*)

A minha intenção é discutir as interpretações de um sonho ocorrido em pleno século IV a.C., num contexto histórico bastante determinado, sonho este atribuído a Sócrates e que pode ser cotejado com alguns dos cânones da Psicologia Analítica contemporânea.

No Fédon Platão nos descreve o último dia da vida de Sócrates. Fédon conta a Equécrates como teria sido o ocaso do filósofo encerrado na prisão enquanto aguardava a execução da pena de morte a que fora condenado. Estariam presentes além do próprio narrador Fédon, alguns amigos e também gente de fora de Atenas, como Símias e Cebes, com os quais Sócrates discutirá o enfrentamento da morte, questões da alma e a vida espiritual.

Curiosamente Fédon menciona ao seu interlocutor que Platão não esteve presente naquele dia por estar doente. Xantipa, esposa de Sócrates, pronunciando “maldições e palavrórios que só as mulheres sabem proferir”, [§ 60a] e seu filho mais novo seriam levados o mais rapidamente para casa e o debate filosófico entre os amigos tomou lugar.

Ao ser interrogado por Cebes sobre o fato inédito de ter composto música na prisão, Sócrates responde falando sobre um sonho recorrente que tivera ao longo de sua vida como o motivo para as suas composições, o que é narrado logo nas primeiras páginas do Diálogo.

Explica Sócrates:
“ Eu os fiz em virtude de certos sonhos, cuja significação
pretendia assim descobrir, e também por escrúpulo religioso –
prevendo, sobretudo, a eventualidade de que as repetidas
prescrições que me foram feitas se relacionassem com o exercício
dessa espécie de poesia”. § 60e

Sobre o sonho, ele continua:

“ Eis como se passaram as coisas: várias vezes, no curso de minha
vida, fui visitado por um mesmo sonho; não era através da mesma
visão que ele sempre se manifestava, mas o que ele dizia era
invariável: “Só Sócrates”, dizia-me ele, “deves esforçar-te para
compor música!”” § 60e


Inicialmente podemos observar que Sócrates desprezou completamente as imagens dos sonhos (não era através da mesma visão que ele sempre se manifestava...), valorizando exclusivamente a voz que dizia sempre a mesma coisa (..mas o que me dizia era invariável...). O que provavelmente ele fez foi reduzir as imagens de vários sonhos a uma única mensagem, perdendo a riqueza que poderia esclarecer os seus significados, fazendo deles um resumo de todos em somente um e com um mesmo significado.

Se assim for, então os conteúdos oníricos foram efetivamente reduzidos e achatados ao seu aspecto ideativo, racional e intelectual, na forma do comando: “deves esforçar-te para compor música!”, bem ao estilo de um tipo pensamento como certamente ele era. Aí já há uma determinação, um recorte específico do nosso filósofo a partir do seu viés tipológico e da tendência poderosamente intelectual da sua consciência.

Em sua primeira interpretação, Sócrates compreendeu o significado do sonho como uma exortação que reitera a tendência da sua atitude consciente, quer dizer, filosofar.

Diz Sócrates:
“...o sonho me exortava e me incitava a fazer o que justamente fiz
em minha vida passada. Assim como se animam corredores, também,
pensava eu, o sonho está a incitar-me para que eu perserve na
minha ação na minha ação, que é compor música:...”§ 61a
“...haverá, com efeito, mais alta música do que a filosofia, e
não é justamente isso o que eu faço?” - pergunta-se § 61a


Se assim fosse, a idéia da compensação postulada por Jung não estaria ocorrendo; o trabalho do inconsciente de produzir sonhos que reiterasse a atitude do Eu seria inócuo e não faria sentido dentro da lógica da auto-regulação energética.

Depois Sócrates irá reconsiderar a sua interpretação. Ele justifica a sua re-interpretação devido ao fato bastante significativo ocorrido no dia anterior ao seu julgamento e que gerou um adiamento na execução da sentença de morte. Havia uma lei vigente em Atenas que determinava a suspensão das condenações previstas enquanto durasse a peregrinação anual até Delos em honra a Apolo, pelo fato do deus ter ajudado Teseu a salvar jovens atenienses da sanha do Minotauro. Assim, a Cidade não poderia ser maculada por nenhuma morte até o retorno do navio do santuário de Delos. Desta maneira, a execução de sua pena foi adiada em torno de um mês, segundo Xenofonte.

Sócrates entendeu que este fato impediu a sua morte e reinterpreta o sonho de outra maneira, diametralmente oposta: compreende o seu sonho como uma ordem específica do deus e não quis desobedecer-lhe. Decide então, literalmente, compor.


Diz o filósofo:
“ E, por isso, minha primeira composição foi dedicada ao Deus em
cuja honra estava sendo realizado o sacrifício.” § 61 b


Aí teria musicado o hino a Apolo, ΕΙΣ ΑΠΟΛΛΩΝΑ, o deus da lira. O hino é na verdade um poema antiqüíssimo atribuído a Homero, dividido em duas partes contendo 546 versos ao todo, sendo os 178 iniciais dedicados a Apolo Délio narrando o seu nascimento e os demais dedicados a Apolo Pítio, celebrando a fundação do seu culto em Delfos, antiga Pitôn. Esses poemas eram recitados como prelúdio a solenidades religiosas ou em simples festivais religiosos e se prestavam a invocar o deus celebrado na ocasião.

E prossegue:
“Depois de haver prestado a minha homenagem ao Deus, julguei que
um poeta para ser verdadeiramente um poeta deve empregar mitos
e não raciocínios. Não me sentindo capaz de compor mitos, por
isso mesmo tomei por matéria de meus versos, na ordem em que me
vinham ocorrendo à lembrança, as fábulas ao meu alcance, as de
Esopo que eu sabia de cor.” § 61c

Aqui Sócrates vai mais além. Um poeta entrega-se aos assuntos da alma, e um filósofo, mais as do espírito. Isto significa que Sócrates diferenciou claramente a atividade racional do filósofo da atividade sensível do poeta e finalmente cedeu; na nossa linguagem ele tratou de atender ao chamado da sua psique, canalizando a sua energia literalmente para a música.

Como isso não devia ser muito fácil para ele, supriu a sua dificuldade no empreendimento poético, usando como guia algumas fábulas de Esopo que já eram famosas na Grécia em sua época. A música ativaria a sua função inferior, no caso a função sentimento.

Com relação ao tema da recorrência, presumimos que Sócrates tenha desenvolvido uma unilateralidade crônica na consciência.

Nós a imaginamos como uma identificação excessiva com o pensamento filosófico e que o seu psiquismo insistia, com sonhos repetitivos, em chamar a sua atenção para outros aspectos negligenciados da sua vida. Fica evidente que a sua psique ainda não havia perdido aquela capacidade de buscar o equilíbrio psicológico, o que costuma não funcionar bem em personalidades comprometidas.

O sonho, ao ser devidamente considerado, poderia exercer a sua função compensatória dentro da dinâmica de auto-regulação psíquica, tentando corrigir a unilateralidade atitudinal de Sócrates.

Isso pode tê-lo ajudado durante aqueles dias de prisão onde ocorria o seu encontro final consigo mesmo. A música pode ter trazido a vitalidade e a ventilação energética que a função inferior carreia para a personalidade total do indivíduo, integralizando-o.

Jung chegou a se manifestar a respeito do sonho de Sócrates narrado no Fédon numa carta-resposta a Hugo Charteris em 09.01.60, o qual compreendeu como manifestação do daimon do filósofo.

Escreve Jung:

“... Sócrates (...) deu ouvidos ao seu daimon e comprou
uma flauta (...), obedeceu humildemente à suave voz do
interior, entendendo-a literal e concretamente como uma
pessoa moderna. O daimon significa “música”, a arte do
sentimento, em oposição à sua constante preocupação com
o “ratio” da idade adolescente (...)”.


Adiante Jung lamenta o lugar do daimon que equipara a anima na vida moderna:

“Nós falamos, mas ele não diz nada; ele nem mesmo existe;
e, se existisse, não passaria de um erro patológico”.


Finaliza:

“Mas ao menos mostrou a única coisa valiosa: Para o
inferno com o mundo-ego! Escute a voz de seu daimon. Ele
tem a palavra agora, não você.”


A impressão que ficou da leitura do Fédon é que Sócrates morreu sereno, morreu em paz.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


APOLO, Hino a - <> acesso em: 25.01.07 às 12:53hs.

ESOPO – Fábulas – L&PM Editores, 2006, SP.

JUNG, C.G. – Cartas de C. G. Jung – vol. III, Ed. Vozes, 2003, RJ pág. 239, resposta

em 09/01/60 para Hugo Chateris.

__________ - Obras Completas de C.G.Jung – vol.XVI , Ed. Vozes, 1987, RJ.

PLATÃO – Diálogos – Abril Cultural, Coleção Os Pensadores, 1972, SP.


(*) texto originalmente apresentado em forma de resumo para pôster no XV Congresso de Psicologia Analítica de 2007.



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