quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

FUTEBOL: MOTIVO DE GÊNERO E BRASILIDADE *

Vem cá também tu, venerável forasteiro; exibe-te
nalgum desporto, se aprendeste algum. Tu deves
conhecer desportos, pois a maior glória na vida
dum homem são os feitos que realiza com os pés e as mãos.
(Canto VIII,” Odisséia”-Homero)


As imagens do futebol tem habitado corações e mentes dos brasileiros desde o final dos anos 30 até quase o fim da década de 90. Durante estes 60 anos, tem se constituido certamente em um dos símbolos mais importantes e reconhecidos de brasilidade, pela identificação maciça de seu povo, especialmente em tempos de torneios e competições internacionais, validada por estrangeiros. Até hoje Pelé é o brasileiro mais conhecido no planeta (Talvez Airton Senna e o ex-presidente Lula hoje também sejam tão conhecidos). Do futebol nos orgulhamos, por ele sofremos e através dele nos afirmamos como povo e nacionalidade.
As imagens relacionadas com o futebol constituem um motivo temático recorrente em nossa cultura cujo valor psicológico tem sido singularmente negligenciado por algumas razões que observaremos a seguir.
Há muitos anos atrás, um colega me confidenciou a sua enorme perplexidade e frustração quando, ao inicio de sua análise junguiana, emergiram em seus sonhos imagens relacionadas ao futebol tão contrárias às suas expectativas de sonhos "profundos e significativos". Igualmente, quando comentei com um colega que iria escrever sobre aspectos psicológicos ligados ao futebol, recebi um olhar de desaprovação e desapontamen
To.
Essas duas manifestações revelam a nossa atitude depreciativa ao associarmos o futebol com superficialidade.
Outra insuspeitável variável advêm do fato de que a Psicologia do Inconsciente se dispõe a tratar de assuntos mais sensíveis e complexos.
Colabora igualmente o fato do futebol ser um esporte, um jogo, algo ainda relativamente novo como objeto de estudo da Psicologia.
Ademais, a maioria dos terapeutas pertence ao gênero feminino, o que converge nessa mesma direção não sem razão, uma vez que o futebol é originariamente um "motivo de gênero", gerando desde um compreensível afastamento feminino desse tema "masculino" até atitudes de certa estranheza ou desinteresse.
Por "motivo de gênero" estou me referindo a presença de um tema que se manifesta com relativa constância e recorrência ao longo do tempo, em torno do qual gravitam idéias e imagens ligadas a determinadas tonalidades afetivas, caracteristicamente significativa dentro do universo do gênero masculino.
Por último cabe salientar a negação da agressividade contida pertinente ao futebol , filtrada nas transmissões de rádio e tv e mascarada pela plasticidade mágica do futebol brasileiro.
O futebol, hoje praticado por um número estimado em torno de 200 milhões de pessoas em todo o mundo, encontra suas raízes em extratos genealógicos de duas ordens: um remoto e mítico, expresso nos jogos patriarcais das ligas masculinas e outro mais específico, ligado a própria historicidade do esporte.
Com os jogos patriarcais clássicos, o futebol guarda estreita vinculação com as competições entre cidades, fratrias ou Estados como aquelas finamente descritas na mitologia grega , romana e outras. Estas festividades anuais reuniam os melhores homens que competiam em diversas modalidades desportivas em homenagem a uma divindade local ou nacional ou mesmo em memória a algum renomado herói: pedestrianismo, equitação, lançamentos de disco, corridas com bigas, pugilato, salto e tantas outras, exaustivamente narradas e descritas (como por exemplo, nos Jogos Pan-helênicos), que fizeram parte do entrecho de inúmeros mitos de herói como também teceram o pano de fundo na formação da identidade dos povos da Antiguidade, onde esses jogos cíclicos faziam parte nas intrincadas relações geopolítica e interculturais entre povos e nações vizinhas.
Com o processo de secularização gradual do mundo ocidental, a realidade dos jogos e competições foi se deslocando do âmbito mítico-religioso para o institucional. Estes passaram a figurar como área de prática de educacional e de entretenimento e lazer, desconectando-se do seu valor espiritual original. Ainda assim, fragmentos e corruptelas das gestas do culto de herói ainda encontraram solo fértil nas nossas psiques e nos campos de jogo, permanecendo refratárias a racionalidade, como bem o demonstra a nossa inesgotável capacidade de glorificação dos atletas bem sucedidos nos diversos esportes.
De outra parte, a genealogia específica do futebol registra, já na Idade Média, histórias e lendas de verdadeiras batalhas campais entre cidades e vilas na Europa, tendo uma bola como elemento de disputa, onde os registros são carregadas de truculência e violência desmedidas, especialmente na Itália com o nome "giuoco del cálcio".
Modernamente foi, no entanto, na Inglaterra, onde o esporte foi devidamente organizado em ligas no início da segunda metade do século XIX , com a fixação de critérios e regras após a sua separação de seu co-irmão,o rugby em 1823 Essa codificação em 17 regras, composta desde 1877 , hoje sob a orientação da International Board, orgão da FIFA (Federação Internacional de Futebol Association), regula um jogo forte e viril, sujeitando a agressividade e furor dos jogadores em busca da vitória.
Com a transição gradativa do caráter amador inicial para a profissionalização, ao futebol foi agregado também um caráter comercial além do desportivo.
O esporte desacralizado por um lado e controlado por regras patriarcais de outro, transformou-se, enganosamente, num jogo insípido e lúdico para o entretenimento e o lazer familiar.
O que sentimos, no entanto, quando vamos a um campo de futebol é surpreendentemente nada insipido: somos, em maior ou menor grau, acometidos pela irrupção de material emocional primitivo e arcaico devidamente constelado pelos elementos eliciadores dessa situação arquetípica. Neste clima de arena, entramos em contato com uma gama de emoções, idéias e sentimentos dos mais variados matizes, que vão desde o ódio, desejo de vingança, sentimentos de despeito e frustração, até vivências, no polo oposto, impregnadas de prazer e êxtase, por vezes podendo atingir estados anímicos sublimes vinculados ao sentimento de fraternidade e solidariedade.
- Isso é uma privada a céu aberto!! Todos põe tudo para fora!! - exclamou um amigo não afeito a frequentar os campos de futebol. De outro lado, as pessoas se abraçam, riem, cantam felizes quando um gol do seu time ocorre.
Ali nos encontramos nós, mais uma vez e sempre, às voltas com os eternos problemas humanos: luta pela vida, luta pelo domínio do imponderável, pelo território adversário, em busca da vitória e da fama, ao mesmo tempo em que combatemos o nosso secreto temor do fracasso, o nosso medo, o nosso sentimento de inferioridade.
Nossa identificação psicológica, muito além da aliança consciente que temos com o nosso time e suas representações, alcança zonas mais profundas em nossa alma, ativando aspectos eminentemente emocionais do nosso psiquismo.
Dentre eles se destaca a agressividade. Nos surpreendemos especialmente com o contato visceral que inexoravelmente se estabelece entre nós e esse fator, interna e externamente: ele nos captura, literalmente nos possui, assustando com a sua presença e com os altas intensidades atingidas. Ficamos, na maioria das vezes, inconscientemente reconectados a determinadas forças espirituais arcaicas, dentre elas esse temível fator, sem que saibamos em geral como lidar bem com ele. De certa forma todos nos permitimos, em alguma medida, um certo grau de vivência dessa agressividade, comedidamente se possível, mas nem sempre dentro dos parâmetros cabíveis. Ela se manifesta, desejavelmente, nos "cantos de guerra" das torcidas , nos hinos dos clubes e assemelhados. Ainda tolerável e parcialmente aceitável, na incontinência verbal expressa através dos xingamentos, provocações, deboches, gozações, ironias, sarcasmos.
Esta é a função catártica; a privada a céu aberto mencionada acima.
O mesmo também ocorre, muitas vezes, vertiginosamente dentro de campo entre os jogadores, técnicos e árbitros, o que nem sempre pode ser facilmente perceptível.
Dentro do campo de jogo, a agressividade usualmente transcende o plano verbal e se espraia em choques físicos faltosos muitas vezes desnecessários e outras vezes dolosos, nem sempre sutis, em desafios explícitos, intimidações, revides, provocações recíprocas e uma infinidade de ofensas a integridade moral do adversário. O clima de tensão e de confronto frequentemente tende a ser abusivo. Viceja, portanto, neste aspecto, um conjunto de regras não-escritas, informais, conhecidas e seguidas por todos os atores do espetáculo,as quais complementam as oficiais Muitas vezes, no entanto, todos os limites razoáveis de tolerância são ultrapassados e o estopim é aceso, fazendo submergir toda e qualquer concepção de sensatez como é atestado, larga e exemplarmente, nas costumeiras liberações incontidas de violência explícita entre jogadores, dirigentes e torcedores, fato este que tem ocorrência contumaz em todas as praças esportivas do mundo, e que significa sempre a vitória do deus Ares/Marte sobre os outros fatores inter-atuantes no fenômeno.
Os jogos coletivos ou individuais que envolvem confrontação física em geral tem o condão de mobilizar este fator de tão difícil manejo, pois ele, antigo habitante da Sombra Coletiva e Individual, quando liberado, aparece deformado, como em sua expressão máxima que é a violência. O futebol mobiliza a agressividade mais exatamente pela negação do fator, ou seja, pela exclusão na consciência da inevitabilidade de sua participação. Sim, Marte/Ares campeia; ele está sempre presente, não sozinho, é claro, mas ele sempre está lá a nos incitar, nos instigar, a mobilizar a nossa Sombra e a da platéia, gerando graves problemas os quais até hoje não solucionados nos estádios desportivos.
Ele está lá em campo sim, inevitavelmente, mas talvez para ser superado pela inteligência: inteligência associada a arte, a estratégia e a habilidade dos jogadores. Como sabemos, Marte sempre foi pouco querido na própria Grécia, eternamente condenado a participar para ser pedagogicamente derrotado. Isso faz parte do conjunto dos valores que integram o nosso patrimônio cultural e que colabora para coibirmos a expressão da agressividade. A dificuldade é que ela acaba sendo reprimida ou negada, como no futebol,trazendo mais problemas por atuar sombriamente.
Neste sentido particular o nosso futebol, com o seu peculiar traço mercurial - macunaímico, fruto da generosa e indispensável miscigenação racial, ao tempo em que teve a sua qualidade já consagrada internacionalmente, trouxe uma enorme contribuição.

Responsável pela invenção mágica dos truques, dribles, travessuras, malandragens e sempre com imensa alegria, a mestiçagem brasileira tornou o futebol uma arte, onde predominaram a habilidade e o talento sobre a rudeza.
Sem aquelas condições físicas próprias e necessárias para enfrentar a truculência e virilidade do confronto físico naquele jogo chamado de nobre , recentemente introduzido e praticado só por brancos, os negros e os mestiços gradualmente foram participando tão somente para completar os times, ainda que em situação absolutamente desigual já que as faltas cometidas eram penalizadas com um adicional direito a revide físico por parte do branco.
Para se esquivar desse confronto assimétrico, o caminho inventado foi o natural desenvolvimento de manobras e técnicas evitativas de sobrevivência dentro do campo, baseadas estas na exímia arte de enganar, burlar, ludibriar e envolver o adversário, gerando esse padrão tão belo de sinuosidade, maleabilidade e maviosidade típicos do futebol brasileiro; o jogo passou a ser menos anguloso e retilíneo e se tornou mais ziguezagueante, matreiro; dengoso muitas vezes, cadenciado outras, mas sempre insinuante.
A mercurialidade do futebol brasileiro indica a presença arquetípica do trickster ativado, fator pré-patriarcal por excelência, que traz esse colorido moleque, transgressor e malandro, traduzido também pelo assim chamado "jeitinho brasileiro", elemento constitutivo da identidade nacional. É com essa natureza marcadamente astuta, solução tropical, que em grande escala foi e continua sendo superada a virilidade marcial própria do jogo, introduzindo uma qualidade anímica a esse esporte tão rijo e duro, como que lhe oferecendo um contraponto necessário e harmonizador.
Portanto, reconhecer os componentes espirituais subjacentes ao futebol e as suas imagens pode se tornar uma tarefa frutífera para uma melhor compreensão da alma brasileira, de um lado e do gênero masculino, de outro..
O mundo do futebol, notadamente visto através da perspectiva do motivo de gênero, torna muito mais fácil a compreensão e manejo de identificações, contra-identificações e das projeções de aspectos de Sombra tão importantes na abordagem terapeutica da Psicologia Analítica..
Isso, por exemplo, fica mais evidente no atendimento de meninos e a - dolescentes, onde a necessidade de discriminação, fortalecimento e consolidação da estrutura egóica em formação é constituivamente fundamental. Aqui as imagens e as referências ao futebol não raramente são abundantes e a sua importância dificilmente pode deixar de ser reconhecida.
O compartilhamento masculino do discurso do futebol, tão característico quanto típico, é outro exemplo irrefutável de sua importância funcional como elemento sinalizador de pertinência ao grupo masculino, vivenciado como naturalmente próprio, onde o feminino, independentemente dos esforços em contrário, usualmente é, consciente ou inconscientemente, excluido.
Essa exclusão constuma gerar vários padrões característicos de resposta de ajustamento do gênero feminino, que vão desde uma compreensão consentida, acompanhadas ou não de tentativas de compartilhamento, sentimentos de mágoa, queixumes conformados, sentimentos de inferioridade e de rejeição até reações de animosidade.
Há, nascente, uma nova resposta feminina à questão, em franco desen- volvimento, que é a tentativa de apropriação do mundo do futebol através da sua prática, como uma forma de participação e uma maior compreensão do seu funcionamento, democratizando este universo. Assim, temos visto crescer campeonatos locais e mesmo internacionais de jogos de futebol feminino ( por exemplo, a 1º Copa do Mundo em 1991 na China e a sua inclusão nos Jogos Olímpicos de 1996 e 2000) como também na modalidade extremamente praticada no Brasil do Futsal, o futebol indoor, jogado em quadras com times de 5 jogadores, onde a presença feminina é cada vez maior. Elas participam menos raramente, mas com a mesma função coadjuvante com que os negros desempenharam na introdução do futebol no Brasil por Charles Miller nos últimos anos do
Século passado.
Este novo padrão tem mostrado duas vertentes de desenvolvimento ainda embrionárias, as quais muitas vezes se mesclam: um padrão marcadamente imitativo e masculinizado, ou seja, onde o Animus detém a condução plena do jogo, e outro, onde já se observa a tendência contra-identificante, mais criativa, germinando um modo próprio, feminino de jogar, algo que já ocorrera em outros esportes como no basquetebol e no voleibol, situação esta própria de um processo em implantação e em busca de diferenciação.


•publicado por Psicopombo, ano IV, nº2, Abril/Maio 1998, boletim da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica., resumidamente com o título O Fator Espiritual do
Futebol.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

DIGRESSÕES ACERCA DA COMPREENSÃO

Diz-se que a Psicologia Analítica é uma psicologia de compreensão, diferente de outras psicologias como a Psicanálise e das ciências tradicionais que são abordagens baseadas na explicação. Quem estabeleceu esta diferença foi o filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1822-1911), o grande teórico na luta pela libertação metodológica das ciências humanas do modelo de ciência praticada na virada dos seculos XIX e XX. Para isso, Dilthey desenvolveu argumentação baseada na diferenças de fundamentos epistemológicos do conhecimento científico tradicional: causalismo, típico das ciências fisicas e biológicas e o finalismo ou teleologismo, próprio das humanidades. Essas últimas, mais do que causas, buscam o significado dos fenomenos psicológicos, sociais e culturais. A Psicologia Analítica, fundamentada no mundo arquetípico e simbólico, segue predominantemente o modelo da compreensão.

Como se daria a busca do significado?

Um dos caminhos é a pesquisa etimológica. Seguindo os passos de R.A. Lockhart observamos o que se encerra no interior de uma palavra, 'o significado e definição usual é muito frequentemente só a casca de uma palavra; nós as usamos mas não conhecemos a sua alma. Somos todos abusadores verbais. Aquilo que possa ajudar a nos libertar da prisão do significado atual, da literalidade e velocidade do momento, nos ajudará a libertar a psique da sua casca aprisionante'.

Nas escavações arqueológicas das palavras encontramos em suas raizes significados originais e ocultos, descobrimos o seu 'inconsciente'.

Vejamos o vocábulo explicação; tem origem latina sendo formado pelo prefixo ex (com idéia de saída, de conclusão, acabamento) e o verbo plicare (dobrar, enroscar) gerando explicatio. Nos dicionários encontramos as acepções:


1. ação de desdobrar, desenrolar, estender, desenfardar.

2. esclarecimento e interpretação.

3. ato de expor pormenorizadamente, narrando.

4. desembaraçar, livrar, acabar, terminar, concluir.


Aqui podemos observar que a noção de que as causas elementares já se encontram presentes no fenomeno, enroladas, dobradas , enfardadas ou embaraçadas e assim sendo, necessitam serem abertas, expostas. Desta maneira, as causas são identificaveis e definidas como geradoras e responsáveis pela ocorrência do evento, ou seja, seus efeitos ficam completamente esclarecidos pelo encadeamento causal. A explicação funciona muito para esclarecer e determinar com competência as causas e os efeitos obtidos. Este é o meio preferencial adotado pelo método científico clássico.

O conhecimento obtido nas ciências da compreensão não é assegurado pelos nexos causais uma vez que não são suficientes para elucidar o fenomeno humano; neste ambito, há interferencia de um emaranhado de possibilidades misteriosas que necessitam mais do que causas, necessitam de significados para que tudo se esclareça. Responde mais a perguntas do tipo 'para quê' do que 'porquê'.

Continuando com a arqueologia etimológica, encontramos as raízes de compreensão no mundo latino onde é formada pelo prefixo com mais o verbo prehender ou praehendere, formando comprehendere ou compraendere que significa:

1. agarrar com as mãos, prender, tomar, apoderar-se, pegar.

2. apanhar em flagrante, surpreender.

3. tomar pela raiz, tomar pela base.

4. conceber um filho.

A compreensão envolve assim um agarrar psiquico, ora lento, juntando, fazendo conexões, ora surpreendendo, apoderando-se de qualidades psíquicas como um todo, atando, sintetizando, aglutinando, chegando às raízes, buscando o insight.

No contexto analítico, onde a atmosfera é contagiante, mesclada, misturada, envolvente, constela baixa discriminação. Fatores emocionais e irracionais que nos fazem refletir sobre a dificuldade na busca da compreensão do psíquico/social/cultural, onde o arquétipo atinge. O processo transferencial é outro fator interveniente no processo analítico. Jung nos fala da compreensão dentro do movimento de empatia profunda, captação da subjetividade do outro, busca dos fatores inconscientes no paciente e através da percepção transferencial em nós mesmos, em nosso corpo e nossa fantasia.

Compreensão exige muito aprofundamento em busca do desvendamento do inconsciente que possa trazer benefício para a consciência humana. Na Psicologia Analítica a predominância absoluta é da compreensão, donde pululam analogias, mas não nos esqueçamos que Jung utilizou extensivamente a explicação em suas argumentações empiricas ou teóricas, muitas delas de carater persuasivo.

(derivado de apresentação em sessão de temas livres em congresso da AJB)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Um adágio em Küsnacht

(revisto para edição no blog)

Há um conhecido provérbio coligido da Antigüidade Clássica por Gerhard Gerhards, um clérigo agostiniano holandês, que adotou o nome latinizado de Desiderius Erasmus (28.10.1466 – 12.07.1536), conhecido como Erasmo de Rotterdam, um dos mais notáveis e influentes humanistas da Renascença. Erasmo teve papel importante na revitalização do Cristianismo bem como na revalorização dos textos gregos e latinos clássicos, como nos aforismos dentre os quais um que assim se enunciava: vocatus atque non vocatus deus aderit, que pode ser traduzido como Evocado ou não, Deus está presente ou Evocado ou não, Deus estará presente.

Este pensamento, séculos depois, viria a ser extraído por C.G. Jung do Collectanea Adagiorum, uma compilação de provérbios e aforismos de autores antigos gregos e latinos, obra de juventude de Erasmo publicada pela primeira vez exatamente em 1500.

Ele devia encerrar grande importância e significação para Jung já que foi esculpido, em sua forma latina, no frontispício de sua casa em Küsnacht, sobre a porta entrada. Além disso, também viria ser eternizado em pedra em uma das três inscrições na lápide de seu túmulo no cemitério protestante de Zurique, onde as duas primeiras inscrições se referem a 1º epístola de S. Paulo aos Coríntios (1 COR 15:47), a primeira, verticalmente à direita, Primus homo de terra terrenus (O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre); a segunda, no lado oposto Secundus homo de caelo caelestis (O segundo homem vem do céu, celeste). O provérbio sobre a presença de Deus está disposto em duas partes, na faixa horizontal superior e inferior da pedra.

Jung sempre teve uma relação especial com pedra e inscrições; ele mesmo cunhou na casa e refugio espiritual em Bollingen, à beira do lago de Zurique, várias idéias de Heráclito, Homero e outros em latim ou grego. Em uma das três faces do cubo de arenito azulado onde estão estas inscrições, há uma citação alquímica sobre o significado da pedra que Jung assim traduziu: “Sou uma orfã, sozinha; entretanto, podem me encontrar por toda a parte. Sou uma, mas oposta a mim mesma. Sou ao mesmo tempo adolescente e velha. Não conheci pai nem mãe, pois devem me ter retirado das profundezas como um peixe ou porque caí do céu, como uma pedra branca. Vagueio pelas florestas e montanhas, mas estou escondida no mais íntimo do homem. Sou mortal para cada um e no entanto a sucessão dos tempos não me atinge”.

Quanto ao adágio de Küsnacht, ele tem sua origem em Delfos, na região central da Grécia, mais exatamente no templo e oráculo dedicados a Apolo, o mais famoso de todos os oráculos gregos. Localizado ao sul do Monte Parnasso, era tido como um ômfalo, dedicado ao deus da luz, poesia, música e profecias, sendo utilizado até 390 da nossa era com finalidade oracular. Para lá acorria gente de toda a Grécia para saber do futuro para questões bélicas, políticas, amorosas, da vida privada, instalação de colônias, casamentos, etc.; uma virgem escolhida como a sacerdotisa Pítia, ficava sentada num trípode, um engenho de três pés; entrava em transe por aspiração de vapores e ingestão de folhas especialmente preparadas para o rito. Sua única qualificação era ouvir a questão trazida pelo sacerdote auxiliar, falar e repetir o que o deus lhe ditava. Assim, o espírito do deus se revelava e a resposta era declamada em versos para que os sacerdotes as transmitisse ao consulente. O contexto no qual o provérbio de Küsnacht teria sido enunciado por Apolo é um tanto vago (parece ter feito parte da resposta a uma questão militar), tendo sobrevivido, no entanto, até nossos dias já com uma coloração exclusivamente monoteísta.

Pois bem, no lado esquerdo do corredor que dá acesso à minha sala de trabalho, há uma foto emoldurada com esse ditado em inglês Bidden or not bidden God is present, obtida de inscrição também em pedra trazida de Londres, mais exatamente da Abadia de Westminster. A foto, por falta de luminosidade adequada, por pura sorte, ficou escura, brumosa nos cantos e mais clara no centro, trazendo um ar transcendental e espiritual. O que isto significa para mim?

Tal qual um mezuzah hebraico, que se instala no batente direito da porta da casa de um judeu e que contém uma oração abençoando e protegendo aquele lar, a mensagem recolhida por Erasmo teria para mim a mesma função protetora do mezuzah.

E para Jung, por que fez esculpir a máxima na porta de sua casa em Küsnacht? Seria o locus do desvendamento dos mistérios do mundo do Inconsciente que naquele recinto se revelariam? Poderíamos pensar neste provérbio milenar como uma expressão simbólica que guarda significados ocultos e assim tentar capturá-los em seus aspectos vinculados ao trabalho clínico, uma vez que a ele por Jung foi associado através da

inscrição cunhada.

Um significado que se pode extrair do provérbio é que independente da nossa consciência profissional, extremamente matizada pelo cientificismo e racionalismo que nos configurou, pois somos frutos do espírito de nossa época, há algo muito além do ego, que ali está presente involuntariamente. Esse algo é tudo aquilo que não sabemos ou conhecemos, que nos escapa, que não enxergamos, que não percebemos, literalmente tudo aquilo que nos é inconsciente. Portanto, ele pode ser entendido como enunciando a existência do inconsciente.

Outro significado se refere à energética; no setting terapêutico operam forças poderosas que emanam do fundo psíquico desconhecido, além daquelas que conscientemente acionamos na nossa atividade clínica, com o nosso método e com os nossos procedimentos técnicos. O que sabemos é que elas se expressam em imagens impessoais ou coletivas fortemente carregadas de afeto dos núcleos dos complexos, ou seja, dos chamados arquétipos, mui propriamente bem representados nas mitologias por deuses

Há mais uma acepção do provérbio que sugere a existência de uma regência superior em nosso labor analítico, que nos estipula uma medida para as nossas dimensões, nos restringindo aos limites de modéstia e humildade; ainda que possamos obter sucesso em nossos esforços junto aos nossos pacientes, estes se dão sempre em estreita observância a um fator maior, abrangente, poderoso, algo acima de nós próprios. Isso também pode ser expresso equivalentemente por outro provérbio do mundo médico: “Eu trato e Deus cura”, verdadeiro antídoto que nos afasta daquilo que foi descrito na mitologia grega como hybris, qual seja, a danosa identificação com o poder de cura, que poderia nos levar ao estado de inflação arrogante e vaidosa, como se fossemos semelhantes a Deus ou aos deuses.

E, finalmente, me ocorre um último significado que se refere o ditado délfico em sua acepção mais literal, qual seja, a presença de um determinante incognoscível divino, onipresente e onisciente, o qual nós chamamos de arquétipo do Self. Colocado à entrada do local onde trabalhamos, nós o evocamos e o denominamos “Self terapêutico”, por atribuir-lhe a função maior de cura e desenvolvimento psicológico.

Neste contexto, significa também que é exigido a personalidade integral do terapeuta como ferramenta a serviço desse Self terapêutico. Todos sabemos como é difícil arte de trabalharmos num campo psicológico árduo, parcialmente consciente e parcialmente inconsciente, funcionando dentro do fio tênue entre o que é consagrado pela ciência formal e aquilo que não é, quando nos movemos na penumbra, na escuta pari passu com as narrativas, com os silêncios de nossos pacientes, na intuição e tendo as vezes tão somente a fé de que Jung nos fala em A Prática da Psicoterapia, onde nos diz que a fé do terapeuta em seu trabalho é fundamental para o bom andamento do trabalho clínico. A compreensão desta sujeição ao Self pode ser a única crença que nos resta nestes momentos de vida profissional, quando tudo parece árido e sem solução. Aí o inconsciente produz os seus símbolos que emergem para o espaço terapêutico e novamente se abre um caminho e a solução para um conflito aparentemente intransponível. É graças a essa presença arquetípica que chamamos Self, e que poderia com certeza ser mais um dos nomes de Deus, que o processo caminha.

Tornarmo-nos conscientes desta presença e o evocarmos voluntariamente no setting terapêutico é dissolvermos as barreiras históricas erigidas entre a clínica e a espiritualidade e tê-lo como nosso aliado poderoso.

Rubens Bragarnich

Bibliografia:

Christian,G. Le musée imaginaire de Carl Gustav Jung, 1998, Ed. Stock

Compton’s Interative Encyclopedia, 1996

Erasmus, D.Colletanea Adagiorum, 1500/1508

Hill, J.Jung na torre de Bollingen, filme, Arthouse Film, 1950,colorido, 30 min

homepage.mac.com/cparada/GML/Delphi

Jung,C.G. Obras Completas de C.G.Jung, Vol.16, Ed. Vozes

Jung, C.G.Memórias, Sonhos e Reflexões, A Torre, 5º ed., Ed. Nova Fronteira

Knight, K.Catholic Encyclopedia, 1909, Vol.5, Robert Appleton Company, Online Edition, 1999.