segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A VISITA

Existe Borges em demasia. Você
talvez esteja falando com um
terceiro ou quarto Borges.
J.L.B.




A claridade vem da janela alta, situada um pouco acima da cruz católica. Ela vem como um facho de luz direto nos olhos... Um clarão. Reação instintiva de cobrir o rosto... Aperto os olhos fugindo da luz.
- Droga...
Devagar a vista acostuma.
- Hum...
As imagens vão ficando claras; nítidas: uma silhueta masculina: cabelos curtos, braços cruzados, blusa areia e um par de olhos fixos em mim...
- Há quanto tempo você está ai?
- Cheguei há pouco...
Arrasta-se para sentar com o costado na cabeceira da cama.
- Eu estava cochilando...
- Sei...
- E você?
- Queria te ver. Já era tempo, não é?
- Como assim? Por quê?
- Você sabe...
- Lúcio, seja claro: você sempre fala assim, a gente nunca entende...
- Entende sim senhor; você sabe, sabe muito bem do que estou falando. Sempre fugindo...
Meu rosto arde como se tivesse levado um tabefe...
- Não deu. Apenas isso. Tive... Tive receio. Fiquei um pouco confuso na época...
- Receio? Confuso com o quê?
- Não sei; receio... Sei lá. Não queria ir, oras bolas!
- Você tinha certeza?
- Sim; tinha. Quer dizer... Achava que sim...
- Então não tinha.
- O que você quer comigo, heim? Me torturar? Já não chega o que estou passando? Neste frio, com essas pessoas estranhas, gente que eu não conheço...
Silêncio
Olhando para o infinito, o acamado vai para dentro de si mesmo:
- Eu pensei que não dava... Simplesmente não dava para ir e pronto. Achava que tinha tomado a melhor decisão. A decisão certa. E... Bem... Depois, depois você já sabe...
-Você simplesmente se negou a ir, cara... Tinha que ter enfrentado; tinha que tentar... Precisava ter tido coragem. - o visitante fala com ódio e amargura.
Os olhos do jovem se enchem de lágrimas.
- Chega! Chega! Eu não agüento. Pare, pare com esse interrogatório!
Mãos no rosto, escondendo o choro com vergonha. Com o corpo virado para a cabeceira, rosto enfiado no travesseiro, a voz soa abafada:
- Não pude ir... Não consegui viajar para a Alemanha... Eu tive medo de não me adaptar, de ter que voltar... Medo. Medo de não conseguir, entendeu? Não consegui ir... - o choro fica intenso e convulso, como chuva com trovão.
- E? Continue.
Ainda de costas, reclinado, confessando...
- Eu deixei passar; pedi para não ir. Achei que era melhor. Mas depois tudo mudou, não sei o que aconteceu: foi ficando ruim; nada mais dava certo; fui ficando com medo... me fez mal, muito mal não ter ido... Passei a ter medo de tudo; até de sair na rua! O mundo ficou estranho, esquisito; não consegui mais ir pra Volks.
Encara o homem de braços cruzados e desvia o olhar para o chão:
- Preciso te contar uma coisa, Lúcio: comecei ver a toda hora aqueles lutadores, uns guerreiros... Todos fortes, com facas, lanças nas mãos. Estavam em todos os lugares. Desafiavam-me... Ô covarde. Cuzão. Nós vamos te pegar... Não adianta fugir. Lúcio; eles riam de mim. Gargalhavam. Eu fugia, mas eles me achavam... Me perseguiam; não tinha lugar para eu me esconder. Tinha que fugir. Era um inferno! Um maldito inferno!
Depois de longo tempo em silêncio, a respiração normaliza...
- A mãe me trouxe aqui. Não sei faz quanto tempo, Lúcio...
- Meses, cara: uns 3 meses.
- Três meses? Já?
- Já. E os guerreiros, ainda te perseguem?
- Não; não mais. Foram embora... Acho que estou melhor. Eu quero ir embora, ir para casa.
- Claro; claro... Vai sim...
Pausa.
- Me perdoa Lúcio!
- Já o perdoei há muito tempo. Na verdade, perdoei há anos... Tudo deu certo: casei com a Cleuza e tenho dois filhos, grandes; estão no colégio. Consegui, a duras penas, emprego no Kalassa. Cuidei-me. Fui promovido! Virei chefe de departamento... - conta cada vez mais exultante até que silencia; percebe onde está e o que veio fazer. Volta-se para o rapaz, muda o tom, quase terno, e aproxima-se da cama:
- Veja; eu precisava te encontrar; dizer-te isso; fazer com que você me visse, percebesse que eu estou bem. Entende? Olhe para mim, olhe para si mesmo!
Os dois homens se fitam por um tempo.
- Um dia nós dois voltaremos a nos encontrar - continua - não numa visita como agora... Em algum tempo, em algum lugar...
O visitante é atraído e fica absorto pela luz da janela por instantes.
- Agora preciso ir. A gente se vê.
Sem olhar para trás, vai embora.
O jovem suspira, escorrega na cama e mergulha novamente na sonolência. Languidamente.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O ENIGMA DE ANTONIO

- Alô. Quem é? Quem? Ant... Antonio? Que Antonio?
Do outro lado da linha uma voz firme, inteiramente desconhecida, diz que me conhecia e como me achou.
- ...ai eu lembrei do seu sobrenome, coloquei na ferramenta de busca e então pam!
Maravilhas da informática. Internet.
- Achei você, cara! Que bom falar contigo! Paulinho, Oh Paulinho! Parecia sinceramente muito alegre.
- Lembra de mim? É o Antonio, porra!
Atônito, ainda em dúvida:
- Claro, Claro. Lembro sim... Quer dizer... Você era o Toninho?
Havia lembrado. Incrível; era ele mesmo.
- Toninho, quer dizer, Antonio, há quanto tempo, heim? 1965, 66... Estudamos juntos no Artur de Azevedo!
Sinto um misto de perplexidade e alguma alegria; tudo familiar e ao mesmo tempo desconhecido. O passado distante de repente entrava no presente. Apreensivo, levo os dedos à boca e nervoso mordisco a unha mas não consigo roê-la como fazia antigamente; hábito antigo do qual ficou somente o rastro.
- Lógico que sim, Antonio. Claro que sim... vamos... vamos combinar sim. Vai ser muito bom. Ainda pergunto de outros amigos da época cujos nomes ainda me lembrava. – ... E o Drauzio, o Caveira, Silvinha, Pedrão...
A conversa foi decaindo naturalmente e o impacto inicial, passando...
- Então Paulinho, a gente se reune de vez em quando para matar a saudade... Vamos te chamar, ok?
Concordo mas no fundo sei que dificilmente irei.
- Fique com os meus telefones, Antonio. E-mail também. Ah, sim; anote aí.
Enquanto ele procura uma caneta para fazer as anotações volto a ser invadido pelo sentimento de perplexidade. Oh Toninho!
- Eu te passo meus dados por e-mail, ok Paulinho?
- Ok Antonio, foi um prazer! Vou, vamos sim. Está bem. Tchau. A gente se vê...
Como pode? Durante mais de vinte anos venho acreditando numa verdade que simplesmente não existe: alguém havia me dito que o Antonio tinha morrido de câncer ainda adolescente, logo após eu ter saído do bairro.
Algum tempo depois, contrariando as minhas previsões, acabei indo a tal reunião com o pessoal do colégio e ali reencontrei alguns do meus colegas e naturalmente o Antonio. Relembramos muitas coisas escondidas atrás de uma penumbra de mais 30 anos, regadas com cerveja e salgadinhos gordurosos e pude constatar o efeito inexorável do tempo: todos envelhecidos, calvos, flácidos, barrigudos, irreconheciveis, salvo raras exceções. Antonio e eu acabamos saindo juntos da festa e fomos caminhando lado a lado até os nossos carros estacionados na rua, tempo suficiente para que Antonio abrisse o seu coração e me contasse uma história intrigante.
- ...Rapaz! Era demais. Imagine: Rio de Janeiro, aquelas praias, aquela beleza de cidade. Mulheres lindas. Foi aí que conheci Branca numa festa na casa de uns amigos que moram lá no Leblon. Foi tesão à primeira vista!
Ouvia-o avidamente. Ele estava empolgadíssimo com sua aventura. Estava bastante alterado pela bebida, rosto avermelhado e resolvemos parar na padaria para um café e ali mesmo continuou sua narrativa.
_ ...Olha!, a Branca era um encanto. Acabamos nos envolvendo. Foi uma loucura! O tempo que passei lá aproveitamos muito: praia, cerveja, música... muita música e muito sexo: dormimos juntos todas as noites. Uma delícia!
Foram duas semanas e meia de amor! Ria satisfeito fazendo referência ao ‘9 e ½ semanas de amor’. Depois de um pausa, cabisbaixo, conformado:
- Mas como tudo na vida, o que começa um dia acaba, meu companheiro: tinha chegado a hora de voltar pra casa. Você quer um cinzeiro, Paulinho? ao ver-me acender um cigarro. Espere aí um pouco... Pronto, tá na mão... Bom, onde parei. Ah! Na volta para casa. Foi bem legal, sabe? teve aquela coisa de despedida, aquela delicadeza no aeroporto, beijinhos, abraços apertados, tchauzinhos e sorrisos sinceros.
O tempo passou e tudo ficou para trás; casei duas vezes, tive filhos, mas nunca, juro por Deus!, nunca me esqueci da Branca. Sabe, era algo especial... Ele estava tentando entender sem entender nada.
- Era algo diferente, Paulinho. Não sei explicar. Quimica, paixão... Sei lá, só sei que Branca era um tormento. Que mulher! Sonhava.. inconformado. Após silêncio de instantes, suspira e meneia a cabeça retomando o fio da conversa..
- Várias e várias vezes eu cheguei a me masturbar imaginando estar com ela... Agora, escuta bem: presta atenção! Agora... Açúcar ou adoçante? Interrompe-se.
- Adoçante, Antonio. Isso, três gotas. Está bom, obrigado. Bom, e daí? Conta o resto!
- Bom, deixa eu ver? Ah!, lembrei! Eu vivia mal com minha mulher, sabe como é... bem, a verdade é que a imagem da Branca nunca saiu da minha cabeça. Aí me deu a louca e eu resolvi ir atrás dela. Eu andava muito descontrolado, precisava sair, esfriar a cabeça. Chego lá. Estou eu no Rio atrás dela. Eu sabia que Branca tinha uma loja fina de roupas femininas ali na rua Nossa Senhora de Copacabana. Chego ansioso e quase sem fôlego e vou perguntando para a primeira atendente que vejo:
- Por favor, por favor, eu gostaria de falar com a Branca.
- O senhor quer falar com a dona Bruna?
- Não, não. Branca. Ante ao olhar surpreso da atendente, continuei: A Branca... A dona da loja... Bran-ca, soletrei.
- O senhor quer falar com a dona Bruna?
- Não, não. Branca. Ante ao olhar surpreso da atendente, continuei: A Branca... A dona da loja... Bran-ca, soletrei.
- O senhor... o senhor. Acho que o senhor não sabe... A loja agora é da dona Bruna, meu senhor. A dona Branca era irmã dela; faleceu de câncer há muitos anos atrás.
Olho para Antonio: ele está calado e triste; o seu olhar está perdido no infinito. Esse átimo parece uma eternidade. Acabamos o café e nos despedimos com um abraço apertado e longo. Vou pensando no enigma que envolve Antonio com a morte. Ele jamais soube que eu o tinha como morto durante anos.